A LUZ CONGELADA
J.J. Lunazzi - Universidade Estadual de Campinas          Direitos de reprodução livres, desde que citando a Revista Ciência Hoje

Revista Ciência Hoje, janeiro-fevereiro de 1985. V3 N16 p.36-46.


No futuro, as imagens do nosso cotidiano serão registradas e reproduzidas em três dimensões, graças a um domínio aperfeiçoado dos efeitos ópticos. Do grego holos (todo) e graphos (registro) surgiu o nome da técnica destinada a realizar a domesticação da luz.

   Em minha adolescência, fiquei muito impressionado com a leitura de uma cena fantástica, descrita em um livro cujo título não me recordo, de uma velha esquimó "que guardava a luz em caixas nos longos dias de verão para poder obtê-la novamente no inverno". Muitos anos depois revivi com surpresa a mesma emoção, pois é quase isso o que a holografia consegue fazer, "congelando" a luz de um objeto em um plano, de modo a reproduzir depois, no espaço, uma imagem perfeita e tridimensional que se situa na fronteira exata entre a fantasia e a mais pura realidade paupável. É um desafio aos sentidos e à imaginação; a perfeição do processo pode ser tanta que um observador não saberia dizer se vê um objeto ou apenas a sua reconstrução luminosa.

   A imagem pode aparecer atrás ou na frente da placa holográfica, saindo dela como um fantasma e criando uma das mais fantásticas sensações visuais do nosso tempo. Mudando o ângulo de observação do holograma, vemos novas facetas antes ocultas ao campo de visão anterior, tal como acontece quando contornamos uma coisa qualquer: a holografia de um rosto, por exemplo, pode nos dar uma visão de frente ou dos sucessivos perfis, conforme nos posicionamos diante dela (figura 1). Além disto, trata-se de uma imagem fantasmagórica, pois aparece somente quando iluminada no ângulo certo, permitindo fazer com que cenas diferentes apareçam e desapareçam no mesmo lugar através de um simples jogo de luzes.

   Não é magia - embora pareça - mas uma técnica ainda incipiente, detentora de grande fascínio e crescente interesse, e capaz de propiciar um imenso salto à frente na antiqüissima busca pelo homem da reprodução de imagens perfeitas. Não podemos sequer imaginar hoje em dia todas as suas implicações para o desenvolvimento futuro da ciência e da arte. Algumas aplicações iniciais, ainda bastante limitadas, já foram mostradas ao público brasileiro: Dieter Jung apresentou no Museu de Arte de São Paulo, em 1974 e em 1984, poemas escritos com letras que flutuavam no ar. Na bienal de São Paulo de 1979, Setsuko Ishii mostrou mãos que quebravam um ovo cuja gema, "congelada", não saía da casca. Eu mesmo pude mostrar, em reuniões da SBPC, uma interessante animação artificial produzida por uma lâmpada móvel que ilumina um holograma: a própria imagem gira, oferecendo ao observador todas as suas perspectivas.

   Imagens tridimensionais coloridas e em tamanho natural de esculturas, peças de museu e pessoas têm sido reproduzidas em todo o mundo, causando sempre impressões impactantes e perturbadoras sobre o público, levado a experimentar um choque de informações: nossos sentidos acreditam na presença real daquilo que os olhos vêem, confundindo a leitura feita pelo cérebro. Afinal, o que é aquilo? De que mundo faz parte?
 

Fig. 1. 

O Prof. Lunazzi segura a placa holográfica no momento em que ela era iluminada com o laser. 
Atrás dela, forma-se a imagem, reproduzida abaixo, do próprio autor do holograma, John Webster, lendo um jornal. 
Note-se que um pequeno movimento lateral da câmera fotográfica provocou uma mudança no perfil da pessoa holografada, exatamente como ocorreria se ela mesma estivesse presente.

A Holografia começou a nascer em 1948, quando o húngaro Dennis Gabor (prêmio Nobel de Física em 1971) publicou a descrição de um novo princípio óptico que combinava com perfeição surpreendente os fenômenos da interferência e da difração na reconstrução de ondas. O trabalho foi motivado pela procura de uma solução às limitações impostas pelo uso de lentes na microscopia eletrônica e não obteve êxito para seu propósito original, permanecendo pouco desenvolvido e sem aplicação prática durante muitos anos, fato relativamente comum na história das ciências.
   Gabor dividiu um feixe de luz de mercúrio em duas partes, fazendo uma delas (chamada "feixe de referência") incidir diretamente sobre a superfície de registro, formada por uma placa fotográfica de alta resolução. A outra parte do feixe original foi orientada para iluminar um objeto e só então dirigir-se para a mesma superfície de registro, sob a forma de um "feixe objeto". Assim, o filme fixou o registro da interferência entre os dois feixes, imprimindo, em condições de grande rigidez mecânica e estabilidade térmica, um complexo código microscópico que aparentemente não formava imagem alguma.

   A descoberta fantástica de Gabor foi a de que a iluminação posterior deste filme por um feixe dotado de características semelhantes ao feixe de referência, desde que feita com um ângulo correto de incidência, é capaz de reproduzir todas as características (inclusive a intensidade e a fase) do feixe objeto original, formando uma imagem virtual capaz de reconstruir com absoluta perfeição o objeto holografado (ver "Princípio e Prática da Holografia"). 

Como cada posição do filme (em relação ao observador) reproduz um ângulo específico de incidência, nossos dois olhos recebem a mesma cena a partir de perspectivas algo diferentes, enviando assim ao cérebro o mesmo tipo de imagem oferecida a cada momento pelos objetos reais. A leitura, portanto, é tridimensional. 

Como se sabe, para obter normalmente a sensação de profundidade, nosso cérebro analisa o tamanho relativo aos objetos, reconhece formas já classificadas pela experiência prévia e registra a rapidez de sua variação, mas a informação mais precisa a esse respeito provém do fato de possuirmos dois olhos que captam paralelamente, com nuances diferenciadas, uma mesma situação, característica dos animais mais desenvolvidos.
 


 
De todas as técnicas anaglíficas (que oferece, numa lâmina, a ilusão de profundidade), a holografia é a única que permite mostrar de maneira natural e perfeitamente contínua todas as perspectivas da imagem registrada. 
Gabor demonstrou pela primeira vez seu princípio óptico através da construção de um holograma de uma cena plana (um diapositivo com os nomes de Young, Huygens e Fresnel, precursores da chamada "óptica ondulatória") iluminada por uma lâmpada de mercúrio, de onde uma linha espectral era filtrada e concentrada num pequeno furo. 

Mas a imagem pioneira obtida por ele era de má qualidade em virtude da ausência, na época, de fontes luminosas adequadas para fornecer raios perfeitamente monocromáticos e coerentes, sem os quais a profundidade da imagem fica seriamente prejudicada porque a interferência entre os feixes torna-se muito problemática ou mesmo impossível. 
Por isto, aliás, é que sua invenção até hoje não se presta à aplicação na microscopia eletrônica, pois a baixa coerência das fontes de elétrons impede a formação de uma radiação dotada das características essenciais à realização da interferência entre diferentes feixes.

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