TENDÊNCIAS/DEBATES

Publicado na Folha de S. Paulo em 24 de dezembro de 1997.


Bacon, Smith, a universidade e a empresa


Em todo o mundo, a pesquisa aplicada e o desenvolvimento de tecnologia são bancados e realizados pela empresa

CARLOS H. DE BRITO CRUZ

Qual deve ser o papel da Universidade no desenvolvimento tecnológico do país? Caberia às universidades brasileiras realizar o desenvolvimento tecnológico de que a indústria necessita para ganhar competitividade? Ou formar as pessoas que vão desenvolver tecnologia nas empresas? Ensinar a pescar ou dar logo o peixe?

No Brasil há muito pouca pesquisa aplicada e de desenvolvimento tecnológico, atividades essenciais para a competitividade da empresa. Mas seria um grave equívoco atribuir à universidade a responsabilidade integral por uma atividade que em todo o mundo é desempenhada pela empresa.

Levado a cabo, tal projeto compromete e inviabiliza o papel que a universidade desempenha e precisa cada vez mais intensamente desempenhar, na formação de pessoal qualificado capaz de gerar conhecimento, gente que aprendeu a aprender.

Estas pessoas irão produzir os avanços tecnológicos tão necessários à competitividade da empresa. Desde que, é claro, a produção de tal avanço faça parte da política da empresa.

Gerar avanço tecnológico e incorporar conhecimento aos produtos e processos faz parte da agenda da empresa no Brasil? Esta é uma questão contemporânea crucial, quando o saber é matéria prima da produção e moeda da hegemonia econômica.

Em todo o mundo a pesquisa aplicada e o desenvolvimento de tecnologia são bancados e realizados pela empresa. A pesquisa básica, apoiada pelo governo, predomina na universidade.

Essa divisão de tarefas não é idéia nova. Francis Bacon (1561-1626), acreditando que a ciência levaria ao desenvolvimento de tecnologia e à produção de riqueza, propôs que o apoio do Estado às atividades de pesquisa acadêmica era fundamental, já que – naquele tempo – resultaria em benefícios para os súditos de James 1º, rei da Inglaterra.

Adam Smith (1723-1790), observou que a tecnologia era fundamental para criar riqueza, mas destacou que as principais fontes de inovação tecnológica eram "os homens que trabalhavam com as máquinas e descobriam maneiras engenhosas de melhorá-las, bem como os fabricantes de máquinas" – desenvolvimento tecnológico na fábrica.

Hoje a empresa continua sendo o local privilegiado da inovação tecnológica. Estudo publicado pela National Science Foundation em 1996, envolvendo 1000 empresas, demonstrou que os principais canais para ganhar acesso a novas tecnologias são empregar pessoal qualificado, compra de equipamentos e uso de consultores.

Nos Estados Unidos 79% dos 960.000 engenheiros e cientistas ativos em pesquisa e desenvolvimento trabalham para empresas. No Japão, Alemanha, França, Canadá, Inglaterra esta percentagem vai de 50% a 70%. Na Coréia do Sul dos 98.000 cientistas e engenheiros em P&D, 54.000 trabalham em empresas.

No Brasil temos apenas 77.000 cientistas e engenheiros envolvidos em atividades de pesquisa e desenvolvimento. Destes, magros 9.000 (12%) trabalham para empresas privadas e públicas, numa evidente distorção do quadro desejável de distribuição de responsabilidades entre universidade, institutos de pesquisa e empresas. Resultado: anualmente as empresas brasileiras registram 60 patentes nos EUA, contra 800 das coreanas.

Nesse contexto, a interação universidade-empresa é relevante. Não para diminuir o compromisso da universidade com a busca do conhecimento fundamental, nem para relativizar a responsabilidade do governo no apoio ao avanço do conhecimento.

A interação contribui para a formação de profissionais ligados aos problemas da vida real. Mas, para que a empresa possa se beneficiar desta interação é preciso que ela tenha alguma atividade de P&D, para que haja bases comuns.

As empresas nos EUA investem anualmente mais de 100 bilhões de dólares em pesquisa, sendo menos de 2% disto em contratos com universidades. No Massachusetts Institute of Technology, o MIT, instituição campeã em interação com empresas, dos 370 milhões de dólares contratados para pesquisa em 1995, 273 milhões o foram com o governo e 52 milhões - menos de 15% - com empresas.

Ao discutir políticas de interação, não se deve perder de vista que a responsabilidade maior da universidade é a educação e que, ali, a pesquisa deve contribuir para esta educação.

Seu produto principal são profissionais altamente qualificados, como os engenheiros formados pelo ITA que, trabalhando para a Embraer, desenvolveram o EMB145, jato regional sucesso mundial de vendas. Ou os graduados pela Poli e Unicamp que desenvolvem no CPqD da Telebrás a Central Telefônica Trópico, que economiza para o Sistema Telebrás quase 1 bilhão de dólares anualmente.

Aqui se focaliza a questão especifica da tecnologia, mas não devemos resumir a universidade brasileira a esta área. Lembremos que cabe à universidade, nas suas diversas áreas de ciências, humanidades e artes, produzir os saberes através dos quais os homens e mulheres serão cada vez mais sujeitos de um mundo que será tanto melhor quanto menos nos esquecermos as lições de Bacon para quem "aqueles que pretendem, não conjecturar ou especular, mas descobrir e conhecer, devem consultar as coisas da natureza diretamente". Que é o que se faz e se precisa fazer cada vez melhor na universidade.


Carlos H. de Brito Cruz, 41, é engenheiro eletrônico pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica) e doutor em física pela Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), é Presidente da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e pró-reitor de pesquisa da Unicamp.